20.9.08

O instante antes do beijo

O instante antes do beijo

Ele foi o meu príncipe por mais de mil e um dias e noites, foi um vício secreto, uma droga pesada que me mantinha vivendo num mundo paralelo a este que chamamos de real. Era só no Edu que eu pensava o tempo inteiro, tecendo mentalmente uma história de amor entrelaçada a tantas outras que eu lia ou via no cinema. Agora éramos Cleo e Daniel atracados num beijo ostensivo em praça pública; depois éramos Capitu e Bentinho trocando segredos e carícias ocultas; domingo, no cinema, quando os amantes eram arrancados um do outro pela vida ou pela morte, era por nossas vidas separadas em cidades distantes que eu chorava.

Para mim, nossa história era a mais bonita de todas, mas o Edu não sabia de nada, nem eu era louca de contar a ninguém. A gente só se via nas férias, quando eu viajava para a cidade de meus avós, onde ele também morava. Lá nos encontrávamos sempre por acaso e por toda parte, e esse jogo de encontros casuais e também de desencontros enchia minha vida de aventura e antecipação.

Nos bailinhos de sábado no clube, eu perdia o chão quando ele vinha, sorrindo timidamente, tirar-me para dançar. Ele não tinha idéia do que eu sentia, e eu me esforçava para disfarçar. Dançávamos sem agarração: ele era o cara mais gentil e educado que eu conhecia, até demais. Era tão bonito que doía: tinha os traços de seus antepassados libaneses, uns olhos muito negros e uma barba cerrada que o fazia parecer mais velho que os outros rapazes de 16 e 17 anos da turma.

Num sábado, ele fez uma coisa estranha. Como sabia que eu estudava francês, pediu-me para cantar a música que estávamos dançando. Era “Ne me quitte pas”, com Nina Simone. Não sei onde fui buscar a audácia para dizer, ainda que numa voz relutante e frágil, aquelas palavras loucas no ouvido do Edu:

Moi je t’ouffrirai
Des perles de pluie
Venues du pays
Ou il ne pleut pas

Em pouco tempo, a canção ia me possuindo, me maltratando, ne me quitte pas, ne me quitte pas, eu suplicava, ne me quitte pas. Aquelas palavras, a maneira como Nina Simone as dizia, me abriam as entranhas, e eu sentia que caía numa cilada. Armada por quem, meu Deus? Com seu pedido surpreendente, era o Edu que me arrancava, inadvertidamente, uma confissão de amor? Ou era eu que a entregava, assim bruta e visceral, por não saber mais fingir? Inebriada pela música e pela proximidade de nossas respirações, senti sua mão em minhas costas, trazendo-me para mais junto de si. Acho que estava toda trêmula, mas continuei cantando, com um fiozinho de voz:

Laisse-moi devenir
L’ombre de ton ombre
L’ombre de ta main
L’ombre de ton chien

Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas

Naquela noite, o Edu me acompanhou até a casa de meus avós. Caminhamos sem pressa, falando menos que de costume, concentrados em ouvir o som de nossos passos na calçada sobrepondo-se ao canto das cigarras e ecoando na noite. Eu não conseguia pensar. Sentia-me pairando num céu estrelado. Era bom inspirar o ar fresco, sentir o perfume de jasmins, gardênias, rosas e de tantas outras flores que compunham os jardins das casas. Eu não queria chegar nunca e avisei o Edu que meus avós dormiam no quarto da frente, a poucos metros da calçada. Seria preciso sussurrar, era melhor nem falar, para evitar que acordassem.

Então, quando paramos junto ao portãozinho de madeira, senti o perigo de ele me beijar, de não querer me beijar e me desapontar, de pensar que eu esperava que me beijasse agora... Essas idéias aflitas me vararam a mente como balas perdidas, e eu tive que escapar sem vacilar.

Com um movimento costumeiro e rápido, empurrei o portão com o quadril e, num instante, já estava do lado de dentro do jardim. Sorri e acenei para o Edu, depois entrei em casa sem respirar. Precisei ficar um tempo grudada à porta, esperando a tontura passar, ainda inebriada por perfumes e aturdida pelo gesto que não saberia explicar.

O Edu já ia longe.


Concha Celestino
06/09/2008

2 comentários e flerte(s):

Cadinho RoCo disse...

Na expectativa o lirismo do desejo confuso contraditório.
Cadinho RoCo

Kely disse...

Pura adolescência, fico torcendo para que os anos lhe tragam amores vividos, coragem (agir com o coraçao) assumida, lindo seu texto, ensaio tímido apaixonado de algo que nunca nos abandonará: o assombro que é amar. Bjs.