24.6.09

Um espelho para o rei


Havia, em um reino distante, um soberano que maltratava seu povo. Isto estava causando uma revolta compulsiva, até mesmo a rainha sentia-se constrangida. A revolta era tanta, que já se ouvia nos corredores do palácio rumores de golpe de estado. Os militares eram tratados como serviçais. Os súditos do palácio andavam amedrontados e faziam de tudo para não cruzarem com o rei.
Sua filha era tratada como uma cidadã comum, sem regalias e com desprezo. Nos momentos difíceis, contava apenas com sua mãe, que, no entanto, não podia fazer quase nada. Era fiscalizada de perto por um dos conselheiros mais próximos ao rei. Com isso era infeliz e vivia em depressão. Fazia tudo para agradar ao pai, mas nada surtia o efeito desejado. Seus pretendentes eram perseguidos e até expulsos do reinado.
Ela estava prometida a um príncipe de um reinado distante; por puro interesse comercial. Ele era detentor de uma frota de navios e dominava o comercio marítimo em quase todo o continente. Já o rei, seu pai, tinha muitas minas de ouro e uma agricultura deficitária. O acordo comercial com o príncipe era de suma importância para manter o suprimento de seus celeiros e a venda de seus minérios. O que menos importava era a felicidade da filha.
A revolta atingira proporções graves. Um de seus conselheiros mais próximos propôs ao rei que fosse feita uma festa com trocas de presentes. Assim os súditos se aproximariam do palácio e as desavenças seriam desfeitas. Era uma excelente oportunidade para apresentar o príncipe a sua filha e a seus súditos.
Convites foram enviados a todos os feudos, artesões e comerciantes do reinado. Seus embaixadores viajaram a reinados e principados próximos para convidarem seus soberanos. Com isso, se esperava que os conflitos eminentes fossem desfeitos. Era uma oportunidade de ouro para todos. Muitos presentes foram comprados. Os melhores artistas foram convidados. Banquetes foram montados. Tudo estava em perfeita harmonia com as pretensões do rei.
Chegou o dia da festa. As caravanas começaram a chegar. O rei recebeu muitos presentes: jóias, animais raros, especiarias do oriente, até escravos o rei recebeu de presente.
De repente, todos levantam e se inclinam, o rei está entrando no ambiente. Senta em seu trono, que está rodeado de presentes: à esquerda, aqueles que foram enviados pelos convidados e a sua direita, aqueles que seriam distribuídos pessoalmente pelo rei.
O vassalo-mor começa a chamar as pessoas ali presentes, que se aproximam, beijam o anel do rei e recebem uma lembrança da festa.
Eis que no meio dos convidados surge um velho aldeão da região mais distante do reinado. Ele traz um presente embrulhado em uma folha de papiro. Aproxima-se e pede permissão para entregá-lo ao rei. Todos o olham com reprovação, afinal o presente deveria ter sido entregue logo que o convidado entrasse no palácio. No entanto, como o objetivo da festa era amenizar as relações com seus súditos, o rei prontamente autorizou a entrega do presente.
Todos ficaram curiosos. O que esse velho teria dado de presente ao rei?
O rei abriu o presente e, para surpresa de todos, era um espelho de prata. Foi o maior cochicho. O rei perguntou prontamente:
_ Por que me trazes um espelho, tenho tantos no palácio?
Todos fitam o velho a espera de sua resposta.
_É para que vossa majestade veja o que vem causando tantos conflitos em seu reinado.
Terminada a festa, todos partiram para suas casas. Somente o velho aldeão foi impedido de partir. No dia seguinte ele foi chamado a ter uma audiência com o rei.
_Como se atreve a trazer um presente desses? Não vê que me ofendes com tal atitude?
_Senhor, muitas vezes é necessário que os outros nos mostrem quais os verdadeiros problemas que temos de enfrentar. Às vezes nossos problemas não passam de conflitos que devem ser travados com nós mesmos. Seu reinado é perfeito. O que deve mudar são as atitudes de vossa majestade.

14.11.08

ESCREVIVENDO - PONTO DE ENCONTRO DE "AUTORES" DO COTIDIANO


Em agosto de 2006, nem me lembro como, comecei a freqüentar a Casa das Rosas atraída em um primeiro momento pelo espaço que representa uma época e um homem que realmente “fez” São Paulo.

A casa das Rosa é um projeto de Ramos de Azevedo e ele a projetou e construiu como presente de casamento para sua filha na década de 30, Hoje ela é um espaço de literatura e poesia Haroldo de Campos.

Em segundo momento me atraiu a oficina oferecida, que tinha o sugestivo nome de ESCREVIVENDO, nome eufônico, significativo e chamativo.

O terceiro elemento que me manteve freqüentando a Casa das Rosas e o ESCREVIVENDO foram as figuras de Karen e Charles se completando no encaminhamento dos temas e questões surgidas. Como se isso não bastasse, os participantes – em numero de 17 nessa primeira oficina – eram todos envolvidos, interessados, com bom nível cultural, com muito a oferecer em termos de conhecimentos, criatividade e vontade de trabalhar.

Ao primeiro módulo sobre temas básicos - ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO TEXTO, seguiram-se outros sempre com temas interessantes. Sobre CONTOS, CRONICAS... muitos autores famosos sendo comentados e discutidos, muitos textos escritos e lidos pelos participantes num compartilhar de idéias, conteúdos e modos de expressão.

O interessante módulo sobre INTERTEXTUALIDADE foi uma sucessão de descobertas literárias. E no módulo SERES IMAGINÁRIOS, a imaginação correu solta e livre nas narrativas incríveis dos participantes -autores.

Seguiram-se os módulos de RESENHAS, MEMÓRIAS, MEMÓRIAS DE AMOR e MEMÓRIAS ERÓTICAS, este ultimo ainda agitando as manhãs de sábado.

E agora o ESCREVIVENDO alçou vôo e foi pousar no Museu da Língua Portuguesa com seu filhote o ESCREVIVENDO MEMÓRIAS DE SÃO PAULO – UM PRIMEIRO CONTATO.

Tão apaixonante como a Casa das Rosa, o espaço Estação da Luz é por si só um lugar encantado. Estar lá já é um privilégio. Poder agora eu também participar das oficinas é alcançar sonhos.

Nestes seis encontros lá na Luz, com o cenário frontal do Jardim de muitos tons de verde a nos distrair, tivemos a oportunidade de, aos poucos tomar posse do espaço como nosso. Fincamos já nossas raízes e o tempo necessário para a gestação de novos encontros só as tornara mais fundas e mais forte.

2009 está batendo á porta e certamente ela se abrirá com novos ESCREVIENDOS – Casa das Rosas – Museu da Língua Portuguesa, agora sob a égide da POIESIS que cuida dos dois.

Esperamos por vocês na Casa das Rosas - ali mesmo na Avenida Paulista 37 e no Museu da Língua Portuguesa, lá na Estação da Luz, que todo mundo conhece e sabe onde é. Tudo em São Paulo, naturalmente.

17.10.08

O INSTANTE QUE ANTECEDE O BEIJO




Por Roberto Dupré






Agora que todos conhecem, medianamente, o Treco, posso, enfim, revelar a história do soturno paciente do leito 5 da enfermaria B.
Em algum lugar do planeta, ele deve ter uma carteira de identidade, de motorista ou coisa que o valha. Neste momento nada disso importa. O que interessa focar é o vasto mundo por trás daquele par de olhos negros como jabuticaba (e lábios vermelhos como pitanga) onde apenas se vê o reflexo da tela da tevê.
Nada há, senão um imenso vazio, compartilhado com uma extraordinária memória de cheiros, sabores e, principalmente afetos.
É fantástica a maneira como um reflexo de tevê adquire propriedades quase físicas. Tudo que ele precisa, está lá: beleza, doçura e a sensação de pertencer a algum lugar; nada impede apaixonar-se pela magérrima moça do tempo do meio-dia ou pela curvilínea moça do tempo da meia-noite.
A porta se abriu e a enfermeira entrou com uma bandejinha, garrote e seringa. Antes mesmo que o Rivotril fizesse efeito, a linda mocinha da série americana que ele nunca perdia, beijou, sofregamente na boca, o mocinho. Beijo de língua. Quando, na juventude ele freqüentava os bordéis, as prostitutas faziam de tudo, menos beijar na boca. Por isso, beijo de língua, para ele, deveria ser mais importante que o sexo em si.
O beijo da mocinha que ele amava, na boca do mocinho que ele odiava, foi uma punhalada. Por isso, nem mesmo a dose cavalar de tranquilizante, impediu uma sucessão de pesadelos, cujo tema central era a traição e o abandono,
Quando a angústia chegou ao limite mais explosivo, ele sentiu o calor de uma mão delicada sobre a sua mão ainda fria.
Abriu os olhos atordoado e Audrey Hepburn sorriu um imenso sorriso de amor.
Então, sentiu-se em casa, na própria cama, virou de lado, relaxou e dormiu.

16.10.08

UM CUPIDO IMPRUDENTE


Por Roberto Dupré



Como Eros, amo desmedidamente
E é tão cruel esse amor, que não sufoca apenas o amante.
Mata o ser amado.

Como Eros, amo desmedidamente
Um amor sem limites que
Ama todos: a mulher que amo, a mulher na rua,
A foto nua da garota-propaganda, a moça do tempo. Amo o amor,
Amo a beleza da atriz e da meretriz (magra ou gorda; loira ou negra; mocinha ou vilã).

Amo você.

E amo muito a vida que se esvai. Sou um escravo desse amor
O que faço em nome dele é monstruoso. Indescritível.

Digo que tenho que ser querido o tempo todo por você,
A quem mantenho encurralada
Na teia pegajosa do que chamo Amor
Na verdade, sou apenas um egoísta afogado em angústia.



FIQUEI NA SAUDADE



Por Roberto Dupré




Por que pesa o morto quando vai no seu caixão?
Não pesa o morto, querida
pesa a saudade da vida que vai em seu coração
Guilherme de Almeida


Por mais que queira abraçar, não há braços.
Por mais que me abrase não há brasa.

Ninguém precisa dizer: estou morto sem feder
E nem mais vejo o céu do seu prazer.
Nem na mão posso dizer que fiquei.
Não há braços.
Nenhum.

POEMAS INCANDESCENTES



Por Roberto Dupré
o sexo é algo que aguça e move tudo em nós.
Aretino










I

No abraço do reencontro
Com o coração tonto de prazer e os corpos em chama,
Lutaram tanto e com tamanho empenho que,
Quando, finalmente, foram para a cama
Não havia mais nada a fazer

II

Ismália, a que da janela via duas luas
( uma, no céu; outra, no mar)
Nua, sob o véu de noiva,
Quando viu o firmamento pela primeira vez
Nem precisou olhar o céu

8.10.08

SER O NÃO SER









Por Roberto Dupré





São quatro e meia de uma tarde interminável de terça- feira.
(E a semana está só começando)
O jovem narciso atravessa o salão completamente nu. Mas ninguém nota
O velho cometa atravessa o infinito. Mesmo brilhando, sabe que vai de lugar algum para lugar nenhum.
Apenas vaga pela imensidão. E ninguém vê.
As covinhas dela são lindas.
Mas ela vê através de mim, como se eu fosse uma janela.
Quero voltar para o passado: só lá tenho futuro.
Sou mais uma piada sobre o não ser.
(E a semana está apenas começando)
( outubro de 2008)