17.10.08

O INSTANTE QUE ANTECEDE O BEIJO




Por Roberto Dupré






Agora que todos conhecem, medianamente, o Treco, posso, enfim, revelar a história do soturno paciente do leito 5 da enfermaria B.
Em algum lugar do planeta, ele deve ter uma carteira de identidade, de motorista ou coisa que o valha. Neste momento nada disso importa. O que interessa focar é o vasto mundo por trás daquele par de olhos negros como jabuticaba (e lábios vermelhos como pitanga) onde apenas se vê o reflexo da tela da tevê.
Nada há, senão um imenso vazio, compartilhado com uma extraordinária memória de cheiros, sabores e, principalmente afetos.
É fantástica a maneira como um reflexo de tevê adquire propriedades quase físicas. Tudo que ele precisa, está lá: beleza, doçura e a sensação de pertencer a algum lugar; nada impede apaixonar-se pela magérrima moça do tempo do meio-dia ou pela curvilínea moça do tempo da meia-noite.
A porta se abriu e a enfermeira entrou com uma bandejinha, garrote e seringa. Antes mesmo que o Rivotril fizesse efeito, a linda mocinha da série americana que ele nunca perdia, beijou, sofregamente na boca, o mocinho. Beijo de língua. Quando, na juventude ele freqüentava os bordéis, as prostitutas faziam de tudo, menos beijar na boca. Por isso, beijo de língua, para ele, deveria ser mais importante que o sexo em si.
O beijo da mocinha que ele amava, na boca do mocinho que ele odiava, foi uma punhalada. Por isso, nem mesmo a dose cavalar de tranquilizante, impediu uma sucessão de pesadelos, cujo tema central era a traição e o abandono,
Quando a angústia chegou ao limite mais explosivo, ele sentiu o calor de uma mão delicada sobre a sua mão ainda fria.
Abriu os olhos atordoado e Audrey Hepburn sorriu um imenso sorriso de amor.
Então, sentiu-se em casa, na própria cama, virou de lado, relaxou e dormiu.

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