28.9.08

Café com pão


Carmem acorda muito cedo, por volta das 05h00. Joga água fria no corpo, maldiz-se, apronta-se, corre até a padaria, volta num fôlego. Na cozinha, sai um samba assim sem compasso, atravessado no bater de panelas e no tilintar de xícaras e talheres. Dali a pouco, vem o cheirinho de café fresco coado no pano. A criançada (Vinicius, 12 e Ana Luiza, 10) chega na cozinha arrastando os pés com os olhos ainda grudados de remela. A mãe, como faz a mãe-gata, carrega um por um e lava-lhes bem os rostos, até ficarem corados. Os olhos, agora bem abertos, contrastam com as bocas fazendo bico. Só acalmam quando a mãe os faz sentar e põe diante de cada um, uma xícara de café com leite bem adoçado e pão quentinho com a manteiga derretendo. Que delícia! Fora da casa, a manhã é fria; dentro, a barriga está quentinha. Os três sorriem por alguns segundos e então, pulam da cadeira quando escutam a buzina da perua escolar da Prefeitura. “Putz! Todo dia a mesma coisa!”, lamenta-se a mãe. Saem mastigando, deixam beijos amanteigados. Carmem, enfim, se permite um suspiro. Ai, vida! Mulher, mãe e chefe de família. O pai preferiu ganhar o mundo. Tomara não tenha se perdido, pensa.

Rápido, afugenta o pensamento. Deixa a casa às 06h30 e o almoço das crianças sobre o fogão. Encaixa-se no trem, pendura-se na lotação e, milagrosamente, aquela santa mulher chega pontualmente às 07h30 na Cafeteria Paulista, seu local de trabalho. Trata de limpar e ajeitar tudo. As colegas ajudam sem vontade, com leviandade. Carmem não se importa pois as trata como filhas crescidas. Às 08h00, abre a loja e dali a pouco, os clientes (adora chamá-los assim, parece tão profissional) vão chegando. Carmem fica eufórica, abre aquele sorriso largo, satisfeito. Cuida de preparar o Expresso com muito jeito, acertando bem o pó. “Com açúcar?”, pergunta. “E com afeto”, responde o cliente quase rindo. Ah, se tivesse coragem, se meus dentes fossem perfeitos e se isso não fosse só uma ilusão, sorri pensativa. Os cafés vão saindo e aquele aroma a tomar conta de tudo. Atraía mais e mais gente. “Me vê mais um café”. “O meu com leite”. “Dois cappucinos, por favor”. E Carmem se desdobrava e o cheiro a estimulava. A certa hora do dia não distinguia mais o cheiro do café, do cigarro, dos perfumes, do seu próprio suor. Enxugava a testa mas o rosto moreno e quente ainda brilhava. Num canto da loja, via fumaça de cigarro subindo com o vapor do cafezinho. As pessoas ficavam envoltas naquela névoa, parecia estar sonhando. Risos. Blá, blá, blá. Um zum, zum, zum. Um diz que diz. Uma zoeira, uma animação. A tarde cai e a luz se difunde. O pôr-do-sol tinge os olhos de amarelo. Os ânimos arrefecem. A Cafeteria vai esvaziando. O café derramado no balcão faz o guardanapo parecer jornal velho. Carmem lembra então de uma história que ouviu de um de seus clientes. Ele lhe disse que São Paulo fora o maior Estado produtor de café do país no século passado e retrasado. Chegava-se a jogar o excedente de café nos rios (contava a parte da história que sabia porque sabia que ela não sabia de nada). Carmem ficava admirada. Naquele tempo, São Paulo era diferente e aqui em frente, na Avenida Paulista, passava até bonde, dizia, concluindo a história. E que lindo devia ser isso, ela imaginava. E a iluminação deveria ser igual àquela da Praça da Sé, aqueles postes a imitar luminárias a querosene, luz quente. Que romântico. E aquele final de tarde dava uma melancolia. Aquele casalzinho (sempre havia um) na mesinha do canto, na penumbra, mãos unidas, dedos entrelaçados, roçando o rosto um no outro, tão bom de ver, apesar da garçonete suspirar. Ô, vida! Quando o coração se comprimia muito, se refugiava no quartinho e ia com cuidado, com carinho, bebericar um cafezinho. Esse era seu cotidiano, sua rotina.

A noite chega, enfim, e Carmem segue em câmara lenta, baixa as portas, pega as chaves, guarda-as na bolsa e parte. Pisa macio na Paulista. Inala o ar fresco da noite. Deixa o corpo cansado seguir leve, solto. Ninguém olha pra ela, mesmo assim sente-se incrivelmente bela. E como é bom ser mulher nessas horas. Que volúpia. Queria poder pegar o bonde. Usaria, então, um lindo chapéu e luvas e, por certo, encontraria um cavalheiro que lhe tirasse o chapéu. Sorriria fingindo encabular-se. Seria irresistível. Adorável. Carmem flutuava enquanto sonhava histórias. E assim, sem perceber, punha os pés em casa. Se pudesse, escreveria. Mas não se dava com as letras, faltava-lhe estudo, nem tinha o básico. Fazia do café sua arte. Expressava-se bem. A loja sempre cheia e animada. A casa pequena, bem arrumada; as crianças coradas, amorosas. Carmem era forte, corajosa, abraçava a tudo. Mas acima de tudo era mulher e por isso havia em seu olhar uma tristeza, uma abnegação. Tinha como paradoxo um sorriso fácil, dourado. Rico. Faltava-lhe um poeta, uma canção.

(Sandra Sirikaku)

5 comentários e flerte(s):

Karen Kipnis disse...

Sandra, que texto belo, wau, como sempre com uma sensibilidade e delicadeza ...uma pintura! Uma partitura, um filme.O 'café com pão' melhor que já provei.
Beijo,
Karen Kipnis

concha celestino disse...

Adorei a Carmem, adoro quem faz de seu ofício uma arte ( como vc, q deve responder a seu filho q é, sim, escritora,sem desmerecer a escrevente). TB adorei o lado sonhador da Carmem,,essa poesia q ela tira de uma vidinha tão feijão c/ arroz, ou melhor, café c/ pão.
Vc escolhe os detalhes certos, temos a sensação de estar vendo a Carmem num filme. É tudo muito claro, dá vontade de ter mais. Por que vc não continua sua história?
Bj e muita admiração da Concha.

kely disse...

Oi Sandra, tudo bem? Achei seu texto muito bem escrito, muito envolvente, uma narrariva gostosa, convidativa, incitante. Mas algo me incomodou muito no seu texto, não pela sua construção, pois é maravilhoso, mas pela ideologia que subjaz a ele, essa visão de mulher abnegada, de um sofrimento "bonito", de um estar feliz sofrendo, cuidando do mundo, e é um cuidado que descuida do cuidador, a mulher sempre abandonada, sofrida, pouco olhada e refém ainda do príncipe encantado, travestido de roupagens mais modernas. Quando escreveremos histórias e seremos histórias de mulheres compartilhando sua humanidade com liberdade, autonomia, viço, exalando a beleza que vem de se expressar ao largo no mundo,hausto caudaloso sem pedir licença pra existir, precisar de amor, mas não de muletas afetivas. Precisar compartilhar o que se é nas relações, quer sejam homem e mulher ou relações de trabalho. Precisar do outro para compartilhar o que se é, não para legitimar o que se é. Um beijo Sandra, espro que vc tenha entendido minha posição, acho que, na verdade, seu texto foi um retrato tão fiel à realidade que me entristeceu, sonho e exerço, o quanto posso, uma mulher que não se envergonha de sua alegria e não se orgulha de seu sofrimento. Bjs.

Anônimo disse...

Sandra, ao ler esta sua obra senti o brilho realmente de enxergar as cenas e os sentimentos tão complexos ali expressos. Percebi em você o poder de realmente criar Arte com as palavras. E eu discordo de quem avalia que neste seu texto subjaz uma ideologia que mereçe mudar. Sua personagem Carmen merece retrato na Arte Literária da mesma forma que o Quasímodo de Victor Hugo,: um corcunda como ele incomoda a auto-estima de quem só quer ver e ler alegrias e sucessos. Quando Kafka criou seu comovente personagem metamorfoseando-se em um inseto monstruoso, estaria ele trazendo à tona alguma ideologia subjacente que deveria ter sido diferente? Muita gente diria a Kafka: retrate homens alegres e auto-confiantes. Até quando escreveremos sobre homens frágeis e tímidos? Não me envergonho da minha alegria e não me orgulho da minha tristeza". A revolução estética do louco e magricela Dom Quixote, do gorducho e ingênuo Sancho e até do cavalinho débil, do eterno Cervantes, foi dar voz e vida e um lugar eterno no coração dos leitores e nas páginas importantes da crítica literária. Quantas personagens opostas à ideologia da perfeição de corpo e alma Machado não criou? Se dissessem a ele: até quando retrataremos o ser-humano na ideologia da doença mental, da confusão moral, da dúvida, da tristeza, que responderia Machado? Uma tal crítica é hoje um pouco chocante, pareceu-me, porque tantas belezas da Arte têm sido belas porque os gênios tiraram do esconderijo "O Idiota", o "Quincas Borba", os tristes, os famintos, os de pé sujo e as mulheres solitárias, sedentas de amor, tolhidas por alguma simplicidade no espírito, por pobreza de dinheiro, gente tão comovente e importante como as do seu "Café com Pão".. Ah, quantas São Paulos guardam tantas Carmens! Se a Arte tiver que ser retrato do "bem-resolvido", do "homem de sucesso", da "mulher pra cima", aí sim vai deixar de ser Arte e ser ideologia, apologia de manter o mundo como está, falso ou parcial, negando nossos dramas. Sinto que você gosta de escrever, e como tem um talento raro, não pare. Ficarei feliz se ler algo mais seu. Com gratidão pela sua sensibilidade, Paul Bowie Freundenberg

Anônimo disse...

Prezado Paul. Você repete muito as palavras no seu texto: realmente, realmente, eterno, eterno, que falta de cuidado estético. Isto é um blog de literatura, para literatos. Vc deveria revisar o que escreve, antes de postar. Além disso acho que arte baixo astral deve existir, sim, concordo com você, mas o auto astral é muito mais legal, gostoso, contribui pra gente e pro futuro do planeta. O corcunda de notre dame, por exemplo, agente nem consegue passar do primeiro capítulo, é um tédio! Tentei, me esforcei, mas não dá. Esse Kafka? Deram muita bola pra ele só porque ele morreu cedo. Joga a gente pra baixo. Desista, Paul, falo como amigo, dessa arte doentia, não vai te fazer bem. Eu sei o que estou dizendo: sou psicólogo! Adolfo Himler